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IMPERMANÊNCIA

O projeto “Impermanência” vem sendo desenvolvido desde 2016 e é um trabalho que acolhe diversas linguagens, dentre elas o texto, o tecido, o bordado, os objetos, o desenho e a pintura. Procuro desvendar a eterna impermanência de todas as coisas, do espaço e tempo ao objeto e corpo, passando, inclusive, pela impermanência de mim mesma. Eu investigo o assombro diante da vida e da morte. O que me interessa é a fragilidade e a inconstância da existência, o bater de asas mais que o voo pleno, o recomeço, o caminho mais que a chegada. Busco a pequena clareira escondida na escuridão na tentativa de jogar luz sobre a minha própria existência.

O trabalho teve início quando voltei a minha atenção para um objeto do meu passado: uma cadeira. A partir da presença dessa cadeira, comecei a pensar nas ausências que ela trazia e nos outros objetos aos quais essa ausência me conectava. Nesse momento decidi começar a pesquisa em torno de tudo que não é permanente, tendo como objeto inicial aquele que não estava na cadeira. Meu processo criativo parte dessas noções de tempo e espaço, corpos e objetos, a princípio, ligados à minha vida, mas que no decorrer da construção das imagens se mostram capazes de conectarem-se com o outro de forma íntima.

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CORPO

PENSARAM NO MEU CORPO COMO QUANDO EU ESTAVA PRESENTE, MAS EU JÁ NÃO ESTOU AQUI. EU JÁ NÃO SOU O MESMO CORPO, NEM VOCÊ. 

Todo objeto e materialidade são corpos que se comunicam entre si. Estamos falando aqui de relações, assim como em minha pesquisa as minhas relações são de extrema importância, o são também as relações estabelecidas entre os corpos que compõem meu trabalho. O objeto central dessa pesquisa é a antiga cadeira de meu pai, falecido em setembro de 1979, quando eu, muito jovem, substitui sua presença pelas minhas memórias. Hoje meu pai é uma imagem, em um tempo, em um lugar, e toda essa memória que construí me faz pensar sobre o que teria sido se ele ainda fosse presença. Em meus trabalhos tento reconstruir essas memórias e por várias vezes me deparei com a imagem de meu pai tomando outras potenciais formas. O que é esse retrato na parede? O que é essa cadeira vazia? Impermanente é aquilo que assume diversas formas, aquilo que não se contenta em ser um, mas que é múltiplo. Como a imagem de meu pai sentado nessa cadeira. Uma mistura de lembranças e dúvidas. Ao reencontrar essa cadeira, começo a recontar a história desse homem que se transformou em imagem. A obra “Raio X” trata desse encontro entre formas e forças: o pulmão e o espaldar de uma cadeira. Sensivelmente esse é o lugar onde corpo e objeto se tocam e se encontram em suas forças poéticas. No decorrer de minha pesquisa percebi um material recorrente, o algodão. O tecido é um material impermanente por natureza. Sua superfície, maleabilidade e função de uso prático denotam esse aspecto de transformação em potencial. O trabalho com essa matéria, com a crueza do algodão, reflete uma intenção de pensar sobre esses momentos de instabilidade. Por vezes esse material é um emaranhado em que pequenos laços e nós formam pequenos objetos. Outras vezes esses laços se estendem, como uma superfície que pende do alto para acolher objetos colecionados e encontrar o chão frio e duro. Os objetos e memórias ganham movimento e se conectam com a materialidade dos outros corpos que o circulam.

MEMÓRIA

QUANDO ME PONHO A PENSAR SOBRE O QUE ACONTECEU, PERCO O FIO DO REAL, ME ACOLHO ENTRE PEDAÇOS DISPERSOS DA VIDA.

Toda memória é inventada, narrativas construídas a partir de elementos factuais e sensíveis. Nesse momento, pois, torna-se impossível distinguir o documental do ficcional. Não existe nenhuma maneira de verificar a autenticidade de sentimentos e sensações do passado, a única prova que resta é a força com que sentimos algo. Durante minha vida 13recolhi e guardei muitos objetos: meus, de familiares, de conhecidos e objetos que encontrei e que de alguma forma considerei importantes para a construção de minha história. Essa coleção de objetos sempre me acompanha e a cada instante que se passa eles conseguem guardar outras camadas de realidade. Temos que pensar o que significa um objeto retirado de seu contexto que em seguida é colecionado para posteriormente ser realinhado em uma outra lógica. O que resta de história nele, fora de mim, é sua materialidade e sua capacidade de instigar conexões e imaginário naquele que o olha.

TRAMA

A CADA NÓ, A CADA LAÇO, AS FORMAS VÃO SE DEFININDO.
A CADA NOVO OLHAR, A CADA NOVO ENCONTRO, IMAGENS SE ACUMULAM, OBJETOS SE ACUMULAM , GESTOS SE ACUMULAM, PALAVRA SE ACUMULAM. 

Nesse contexto de deslocamento do objeto inicia-se também o procedimento de trama. Tramar é costurar. Fazer com que a linha se torne tecido. Tramar é reinventar a forma, e quando o objeto solitário se comunica com outro objeto, ambos são capazes de contar outras histórias, que vão além de sua origem, mas que também se tornam potencialmente poéticos quando se pensa na função, na forma, no símbolo e no signo que representam. Tramar é criar tecido. Enquanto crio essas tramas realizo procedimentos que considero importantes: Rasgo energicamente o tecido em tiras e as desfio devagar, lentamente. Enquanto retiro as linhas que sobram na borda de cada tira, retiro também a poeira do meu espírito, os alinhavos se desfazem na minha alma até que tudo fique leve e solto. Então, uma a uma emendo as tiras com pequenos nós, lentamente. Nada aqui tem pressa. Uma a uma, emendo e suturo as feridas do meu coração. Algumas ficam curadas, outras voltam a abrir. Começo tudo de novo. Tramar requer tempo e paciência. Pego duas tiras limpas, sem fios soltos e junto ponta com ponta. Então começo a dar a laçada pra transformar em nó. A pressão é calculada para que ao puxar as tiras o nó não fique muito pra dentro, evitando que sobrem pontas muito grandes em cada um. No entanto, se eventualmente sobrar uma ponta grande não a corto. Os alfinetes trazem o que é provisório, o que muda ou é possibilidade. Dourado porque o ouro é símbolo de aliança. Recomeço, e nesse transbordamento encontro o que nunca é, encontro as passagens, um tempo fora do tempo, em que o mundo dos sentidos ganha uma visão privilegiada. Encontro novamente o retrato na parede.

© 2021 todos os direitos reservados Elaine Fontes

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