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UM DESTINO DUPLO

- por Marta Porto

 

No ateliê de Viçosa, Minas Gerais, Elaine Fontes tece suas ambiguidades, habitando territórios que tensionam o desejo de romper fronteiras, sejam elas quais forem, e de permanecer acolhida no universo que a conforta.

 

O feminino místico do interior de Minas, se revela nos gestos, nas cores, na amplitude que seu trabalho artístico ganha nos grandes formatos que escolhe para trabalhar. As tias, que na infância dessa artista, se faziam presentes pelos objetos religiosos – terços, escapulários, medalhinhas, fotos antigas de parentes mortos- dispostos pelos quartos a cada visita, deixam na menina que já se sabia artista, um misto de medo e curiosidade. Como num sonho, as marcas desse mundo carregado de simbolismo barroco, tensionam os desejos sensuais e de voos maiores, desejos ainda não autorizados, que a essência de Elaine reclama.

 

Essa dualidade, se traduz como a grande potência artística da obra de Elaine Fontes. De uma autenticidade clara, por vezes angustiante, expressa uma identidade vibrante, embora sempre dual. Os temas falam das coisas que afetam a simplicidade dos dias, a natureza transcendente das Gerais, permeada por fantasmas corriqueiros de religiosidade, silêncios impostos, e um lado doloroso de quem precisa superar essas condições simbólicas para estar no mundo de forma plena, como mulher e como artista.

 

A sexualidade e uma sensualidade autoconsciente emergem como ruptura dessa herança repressora. As cores vibrantes, os vermelhos e os azuis intensos, as pinceladas vigorosas e o sentido de impermanência que permeia as várias fases artísticas, provocam um jogo constante de simulações com as costuras, os alfinetes, os bordados, os novelos e faixas hospitalares presentes em outros trabalhos. Esse destino dual, que parece ser uma conversa da artista com ela mesma, funciona como um manifesto que declara uma impossibilidade: quem sou eu, pergunta ela? As indagações íntimas funcionam como um pretexto para seguir costurando pulmões e continuar evocando o sentimento que à aproxima do passado ao mesmo tempo que o denuncia como uma herança que impede a sua realização plena no mundo.

 

As séries produzidas pela artista investigam esses momentos diferentes da alma. Por vezes, a necessidade de se aventurar em grandes espaços, como em Cidades, Mar Adentro e Veleiros, em outros, de se recolher no seu espaço íntimo para encontrar a vitalidade presente no dia a dia: a sexualidade, a família, os hábitos corriqueiros da mulher que atua como protagonista da casa. Feridas, Fósseis, No Limite, A Forma do Som, são algumas das séries produzidas neste ato de investigação interna. E há também os momentos onde a angústia a levam a uma produção que podemos considerar como um rito de passagem, onde a artista pede a si mesma para estabelecer outras prioridades. As obras produzidas nestes períodos são profundamente investigativas, se arriscando em outras linguagens, texturas, materiais, formatos. Uma das mais pujantes é a série intitulada Das cartas que não criei.

 

Essa marca artística dotada de um senso de ambivalência permanente, produz uma obra potente e autêntica que nos mostra um universo ainda pouco explorado pela crítica das artes visuais no Brasil.  Olhar para o que vem sendo produzido fora das cenas e dos temas mainstream das artes.

 

Elaine Fontes, como muitas artistas visuais, poetas, escritoras que criam em seus ateliês no interior do país, representam os retalhos guardados das nossas avós, mães e ancestrais. Há que buscá-los e celebrá-los.

 

Marta Porto

Novembro de 2018 

[1] Título hackeado do ensaio de Susan Sontag sobre Ana Banti, em Ao mesmo tempo, pg.53. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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